segunda-feira, 27 de junho de 2011

Vagabundas, Pessoas Diferenciadas e o conceito de raça.

CHURRASCO DA GENTE DIFERENCIADA

SLUT WALK NO CANADÁ

No último dia 27 de maio teve lugar no Brasil a exemplo do que ocorreu em várias partes do mundo a ”Marcha das Vagabundas”. Ou Slut Walk, como certamente pareceu soar melhor para as moças de boa família ao justificarem para seus pais desavisados sobre onde estavam. No dia 14 do mesmo mês a batata assou no “Churrasco da Gente Diferenciada” no bairro de Higienópolis em São Paulo, Capital.
O que há de comum entre essas duas formas legítimas de manifestação popular é que elas foram desencadeadas pela palavra de um Outro, colocado no lugar de uma representatividade que talvez não tivesse escolhido. Ou sequer sonhasse ocupar. Neste lugar acidental,  capturado por uma fina trama de significados, despertaram da habitual indiferença, fazendo  convergir  os mais profundos sentimentos de indignação aqueles que motivados por uma cada vez mais estranha e rara identificação acharam oportunidade de se colocar na posição de ordem unida.
Segundo relata a imprensa, a sugestão infeliz de um policial canadense, provável aspirante a comentarista de moda, deu origem ao nome da marcha ao associar a vestimenta das mulheres às razões dos casos de estupro. Em higienópolis, uma moradora  da quatrocentona cidade paulista nomeou de gente diferenciada os frequentadores do metrô que seria construído nas imediações.
Do mesmo modo o conceito de racismo parece destinado a ressucitar o fantasma de uma teoria equivocada construída por Outros, capazes de legitimar seus preconceitos e disseminar um pretexto tolo para exclusão.
O fato de que façam de uma real condição de insignificância ultrapassar a mera fortuidade de uma palavra leviana é mais um dos perigos de nosso tempo. Há quem diga que ameaça a espontaneidade e o humor. Reconheço, porém,  na artimanha  que faz  torcer as palavras a favor de objetivos que parecem nobres certa semente do que é combatido.
Por isto mesmo, não sejamos ingênuos, a palavra ainda tem força, mas não garante que unidos venceremos.




quinta-feira, 16 de junho de 2011

O PARADOXO DO DESAFIO

Detesto desafios! Mas antes que essa declaração pública me custe algumas promoções, explico que eu os detesto porque eles me fascinam de tal modo que me dominam. Um amigo meu costuma dizer que se você deseja forçar alguém a fazer determinada coisa que ninguém quer basta dizer que duvida que ele faça. Nos dias de hoje em que conta pontos no emprego o discurso de adoração das dificuldades representadas pelo apelido de desafio  insisto em dizer que é a preguiça a mãe de todas as invenções. Por isto inventou-se o carro, a máquina de lavar louças e, provavelmente, até a bomba atômica. Portanto, o verdadeiro desafio é continuar no ócio.
Tudo bem, reconheço que as dificuldades  tornam a vida mais interessante, mas quem deseja uma  vida tão cheia de problemas que não se pode usufruir dela ? Em geral uma biografia que vale a pena ser contada só o é do ponto de vista do leitor. Para o biografado foi sofrimento e exaustão. Em outras palavras, quem suportaria viver uma vida “interessante” o tempo todo? O que estou tentando dizer é que o que é interessante só o é porque é ocasional. Por que nos assalta num dia morno e pachorrento fazendo com que a gente se interesse por se levantar da cama e pensar obsessivamente o dia todo em voltar para ela pelo maior tempo possível.
Em resumo, prefiro as facilidades e atribuo boa parte dos que cultivam as dificuldades a uma espécie de desinformação para com os esforços de antepassados que queimaram a pestana para dar a si próprios e a seus sucessores algum conforto e tranquilidade.
Algumas pessoas quando inovam em determinado campo muitas vezes não se dão conta do que representa sua ação. Talvez se  percebessem  suas delicadas nuances certamente não  fariam  o que fizeram. Não se trata de nenhum modo da forma clássica do conceito de alienação. Tampouco estou sugerindo que os pioneiros que agem assim possuem uma boa dose de falta de noção. Mesmo porque em muitos casos a atitude desbravadora foi justamente aquela que contribuiu  para ampliar a capacidade de percepção social de abordagens que em determinado momento histórico pareciam incompreensíveis ou  insuportáveis.
Tal limitação perceptiva de algum modo cria condições subjetivas que favorecem sensações de  desprendimento e forte convicção diante de situações incertas e cheias de  adversidades. Contudo não exime  seus  portadores das eventuais consequências do que, em outras circunstâncias, não hesitariam em nomear como  insanidade. Em muitos casos a este excesso de confiança  podem ser debitadas ao menos enormes controvérsias sem nenhum resultado prático. Ou simplesmente fatalidades irreversíveis.
Fato é que tais situações são raras para a maior parte das pessoas. Com outras, nem tanto. Contudo, é justamente a tentativa de perpetuar o caráter de excepcionalidade desses momentos especiais em que parecemos inspirados por uma chama divina que nos faz persistir. Apreender essa chama dentro de nossos corações é daquelas utopias consoladoras que nos fazem teimosamente avançar em projetos maiores do que nossas pernas. Mandamos às favas o bom senso para nos convencer de possibilidades além da imaginação.
E por incrível que pareça, por esse caminho improvável, alguns obtêm êxitos assombrosos.
Maria Mazzarelo é um desses exemplos inspiradores, cujo modo de agir no mundo atravessou obstáculos que intimidariam a maioria de nós, simples mortais. A proprietária da MazzaEdições, pioneira na publicação de livros voltados para a divulgação de conteúdo de debate do racismo e disseminação de valores da cultura afrobrasileira, é uma senhora negra, franzina e pequena que desdenhou os prognósticos mais realistas para construir um caminho próprio, feito de dignidade e afirmação de suas mais íntimas convicções.

Ao contrariar as expectativas de um futuro que repetiria a trajetória de subalternidade e fracasso que caracteriza a história do negro brasileiro, a Mazza Edições elevou a luta anti-racismo a um patamar superior, ao começar do exemplo de sua própria fundadora.
Ao completar 30 anos no mês de maio passado, Mazza consagra-se para  mim e outros que também a admiram como um modelo daquilo que queremos ser. Não sei se o tempo me fará repensar minhas opções atuais como loucuras ou vitórias, contudo,  fica minha homenagem aqueles que transformaram pessoas como eu em pioneiros de uma condição social ainda muito longe do que sonharam, mas bastante diferente do que herdaram.
O que podemos fazer com heranças valiosas como essas é, obviamente, muito mais que puxar um ronco e dormir acomodados com nossas desculpas pacificadoras e paralisantes. O paradoxo que pessoas como Mazzarelo nos ensina é que desafios  servem para atrapalhar nossos sonos, mas também para nos fazer sonhar.

O “Kit Gay” e o kit opinião.


Não tive acesso ao material que fazia parte do que o Ministério da Educação propunha para a inclusão da questão da diversidade sexual nas escolas brasileiras. Tenho acompanhado, incrédulo, o debate pelos meios de comunicação, já que cada qual se esforça em nos convencer de suas posições de um modo que ultrapassa a própria abordagem e se aproxima de um proselitismo constrangedor. O que me parece é que não é difícil encontrar pelas ruas ardorosos defensores de ambas as posições que também não chegaram a analisar o dito material. Portanto, não desejo me juntar a eles. Entretanto tenho algumas ponderações quanto ao mérito da questão.
Já há algum tempo, um cacoete tem sido assimilado entre os se querem bem-pensantes. Trata-se da ideia de que faltam políticas públicas para tudo, pois estas é que salvarão o mundo.
É evidente que durante muito tempo o Estado brasileiro foi omisso no que diz respeito a muitos aspectos da realidade social. A questão da segurança pública é fato quase incontestável. Quase! Não fosse o fato de que foi justamente por meio do Estado que a insegurança pública se consolidou. Pode-se dizer que na verdade havia sim uma política pública que induzia o crescimento e a disseminação da violência nas periferias das cidades brasileiras. Digo que foi pela incapacidade inerente do Estado de promover as medidas eficazes, de seu engessamento pelos artifícios políticos e sua estrutura burocrática que a violência se estabeleceu nesta dimensão em que  atualmente se encontra.
Pois bem, em relação a questões de cultura e comportamento social também se evoca o Estado na resposta que ele pode oferecer para assuntos como a mudança de mentalidades num tempo em que estão sendo estabelecidos novos códigos sociais em relação à sexualidade, às relações raciais e de gênero, à liberdade de expressão entre outras. Contudo, a discussão esbarra nas limitadas reflexões que a sociedade brasileira já foi capaz de fazer em seu tão recente retorno às liberdade democráticas no que diz respeito ao papel e as limitações que cabem ao próprio Estado.
Independente dos preconceitos relacionados aos gays e lésbicas que o debate atiça, sempre houve quem perguntasse se seria mesmo função do Poder Público abordar determinados assuntos cuja prerrogativa em outros tempos seria privativa dos pais. Colocado sob este ângulo somos convidados a pensar que de fato não há educação neutra. O Estado sempre terá um ponto-de-vista a defender, segundo seus interesses. Dar o consentimento para que o Estado desenvolva determinadas intervenções em nossa vida privada não é algo que significa que ele o fará sempre do mesmo modo. Vale lembrar que numa verdadeira Democracia os titulares do poder público  nem sempre são a expressão dos desejos e vontades de todos. O que também não significa que  a parcela minoritária  deixe de ter sua legitimidade contemplada. Num processo normal de alternância de governos nossa posição sobre determinado assunto pode ser minoritário, e no outro majoritário.
Nos EUA, durante o governo Bush, promoveu-se a virgindade e o criacionismo como políticas de Estado, até mesmo com o apoio da ala mais conservadora do partido republicano. Os tais  que não hesitam em repudiar as intervenções estatais na vida do cidadão.
No nosso caso, algumas perguntas se fazem necessárias, portanto:
1)    Em que momento este tema apareceu nos debates eleitorais de forma clara e transparente de modo que a população pudesse entender que implicações teria seu voto neste ou naquele candidato?
2)    Está claro para todos qual é a abordagem que se está defendendo?
3)    O kit deve ser dirigido apenas aos professores ou também aos alunos?
4)    Que tipo de formação o profissional escolar deveria ter para melhor se qualificar sobre o assunto?
5)    Que posicionamento de natureza ética estará envolvido?
6)    Como gerir o conflito com as minorias religiosas na escola?
7)    Haverá algum tipo de monitoramento sobre os efeitos do processo educativo na escola?
8)    Quem o faria?
9)    Quais os parâmetros?
10) Que tipo de realidade social deverá ser considerada para a adequação do conteúdo?
As fronteiras que delimitam os campos do público e do privado não são fáceis de serem demarcadas. São territórios que sofrem tensão permanente em nossa época especialmente, por isso requerem delicadeza e disposição para negociar. Nem um nem outro parecem confortáveis nos limites fronteiriços de suas capitanias hereditárias.
É obvio que nossas práticas democráticas ainda incipientes  têm muito o que aprender e este debate é uma oportunidade singular para seu amadurecimento. Destaco, no entanto, que o apelidado “kit gay” não deveria supor um “kit opinião” compulsório em anexo que tem sido imposto junto com uma discussão que exige reflexões mais aprofundadas e críticas, muito além do que permite o formato da disputa política a que o debate ficou relegado.