domingo, 23 de outubro de 2011

O Humor e seu veneno

Rindo até cair - Recados e Imagens para orkut, facebook, tumblr e hi5
Rir quase sempre tem um componente trágico de fundo!




Uma piada considerada de mal gosto é necessariamente sem graça?
Eis uma pergunta de diferentes implicações, ou seja, capaz de desencadear perguntas de difícil resolução, embora pareça banal. Há um consenso implícito atual que faz crer que o ato involuntário do riso pode e deve submeter-se a uma espécie de triagem moralizadora que o chancela na categoria do que pode ser engraçado ou não.


Trata-se de mais uma tentativa de domesticação de um impulso, por princípio espontâneo, que coloca o ser humano no fio da navalha entre a natureza e a civilização. É bem verdade que os diferentes tipos de humor sofrem decidida influência da cultura. Há uma forma de rir que é típica do brasileiro (bem como a do carioca, do nordestino,do mineiro etc) e uma modalidade de humor que é reconhecidamente inglesa, a título de exemplo.


A discussão que me interessa fazer, no entanto, é se essa intervenção artificial, proposital e dirigida dos valores culturais consagrados como politicamente corretos não faria de nós um pouco menos humanos ou pessoas sem espontaneidade e alegria, mesmo diante dos infortúnios. Escolher entre civilização e natureza não é uma decisão assim tão pacífica, como nos lembra Freud. O riso é um campo privilegiado da interface entre esses dois mundos.


Das múltiplas indagações que esse tema nos convida (e torna impossível aborda-las todas aqui) uma delas é sobre a natureza da graça. Gosto muito de uma teoria que diz que o riso foi incorporado pelos seres humanos como um hábito observado em certas espécies de macacos. Ele teria começado com a ostentação agressiva da mandíbula diante de uma situação de incômodo ou sinal de insatisfação. Por esta ideia, supõe-se que o riso é uma evolução, e uma forma aprimorada de dissimulação de um mal estar. Por isto, rir quase sempre tem um componente trágico de fundo. É o tropeço inesperado, a vergonha revelada, o ridículo incontrolável e público. A risada serve de consolo e também de provocação. Há algo que sanciona a verdade denunciada ali e, naquele momento, compromete solidariamente todos os que gargalham.


Poderíamos discorrer sobre a variedade do riso (como o sardônico, o de felicidade, o reflexo- motor etc), mas desejo apenas aproveitar o mote sugerido pelo noticiário que repercute a piada de Rafinha Bastos para contribuir com esta modesta reflexão. O humor pode ter efeitos inesperados, mas nunca ingênuos. Ele é malicioso e maledicente. É anárquico, não ordeiro. Irreverente, não respeitoso. É um feito da inteligência humana capaz de, por meio do poder da palavra, fazer sacudir o corpo do interlocutor ou adversário numa convulsão incontrolável.


Se ainda não ficou claro qual é minha posição, manifesto-me, sempre que possível, a favor da liberdade de criação e dos riscos inerentes ao seu exercício. Por isto, não acredito que seja possível ao humor limitar-se a condicionantes que violam sua natureza insubordinada, mesmo que isto custe uma amizade ou outros valores ainda mais caros de nossa civilização.


Portanto, o resultado positivo do mal gosto engraçado de Rafinha é dizer que, sim, ainda há algo a transgredir em nosso tempo. A começar por essa nossa pretensão de liberalidade, acobertando um moralismo enrustido. O que todo esse escarcéu prova é que o humor é mesmo poderoso, porém, há um poder concedido a ele que o ultrapassa. Essa validação de sua verdade só confirma a confissão de culpa. Destitui-lo de um lugar de verdade, como um apelido não revidado que não pega, talvez seja o melhor antídoto contra seu veneno. E a melhor resposta que o humor pode ter é o próprio humor.



quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O gás da indignação


O vai-e-vem das decisões judiciais que tem marcado o caso do Condomínio Habitacional Cingapura e do Shopping Norte em São Paulo é mais um daqueles episódios emblemáticos que retratam o modo de funcionamento de um país.
Construídos no terreno de um antigo lixão há cerca de 16 anos, técnicos da Cetesb, revelaram que o acúmulo de gases resultante da decomposição dos resíduos ali aterrados poderiam causar a tragédia de uma explosão. Há pouco menos de um ano das próximas eleições municipais, a repentina vulnerabilidade descoberta gerou uma guerra de pareceres técnicos, cujas interpretações  vão do risco relativo ao desastre iminente.
Num curtíssimo espaço de tempo, novas medições renunciaram ao apocalipse profetizado para uma alternativa politicamente conveniente que prevê a instalação de dutos que drenariam os gases ameaçadores.
É grande o mistério que orienta a formação de convicção dos juízes para a expedição de seus veredictos, a despeito da avaliação dos setores responsáveis,  que garante a atividade lucrativa do sacrossanto templo do consumo freqüentado por milhares de pessoas. Também causa espécie a certeza que mobiliza outras centenas na tentativa desesperada de garantir a permanência em sua moradia num condomínio de classe baixa que solta puns flamejantes __ uma das moradoras afirmou num dos noticiários da TV que nunca viu os tais gases.
A população que, perplexa, observa de longe não sabe onde canalizar sua angústia diante dessas pequenas demonstrações de desrespeito e descaso para com a vida humana. Os diretamente envolvidos têm de optar entre confiar em juízes que na condição de servidores públicos  jamais terão que responder por suas decisões equivocadas  ou em profissionais que não compreendem que sua racionalidade técnica provoca impactos decisivos na vida de gente simples.
Quem sabe se um dia não será a indignação cidadã que explodirá?





quarta-feira, 5 de outubro de 2011

UM TIRO À ESMO NA ESCURIDÃO DO DESEJO

Davi Mota Nogueira ( Reprodução)

Dentre as relações que um objeto estabelece com a linguagem, dois pólos extremos podem ser divisados: o estigma e o simbólico. Nesse vertiginoso e sutil limite estão muitos deles, entre os quais as armas talvez sejam uma sua versão mais corrente.
O episódio que envolveu uma criança de 10 anos que se serviu de uma arma para atirar na professora e por fim a sua própria vida com um tiro na cabeça, representa, a meu ver, muito bem essa estranha relação. Uma arma nas mãos de uma criança tão pequena dificilmente  traria bons resultados, contudo é num certo elemento de autonomia que lhe transcende a condição de mero objeto que me motiva a pensar que algo parece escapar das posições que a asseguram um lugar prefixado e estático, em cuja moldura se recusa a conformar.
Oportunidade inevitável para as campanhas de desarmamento que insistem em repetir o bordão “arma só serve para matar”. Também é ocasião para liberar os significados que atribuímos às coisas mais banais, e que, provavelmente, gostaríamos que se esgotassem em si mesmos. De minha parte, prefiro o ponto de vista de quem não se esquece de que armas também são instrumentos sedutores que remetem ao poder e à sexualidade. Por isso são  considerados símbolos fálicos.
Se a dimensão do estigma é a redução do objeto a um único e limitado significado (morte-violência), a do símbolo é a ampliação de sua referência concreta (poder /sexualidade). Não é à toa que  meninos de todas as idades aspiram o  porte e a ostentação de um objeto que se situa num além de sua instância material. Mostrar a pistola do pai para amigos e ganhar notoriedade e prestígio no jogo da afirmação social significa uma promoção no âmbito da conquista de um lugar de domínio exclusivo daqueles que não são vistos como tolos e certinhos. Assim, o jovem garoto, “bom filho”, “aluno exemplar” e criado num lar de formação evangélica saltou por uns instantes para a complexidade dos  seres humanos providos de contradições e incertezas. As evidências parecem confirmar que nenhum motivo justificaria o acontecido, a não ser a explosão própria da libido. O gozo que, não por acaso, atingiu o quadril da professora foi um tiro à esmo na escuridão do desejo. Um disparo descontrolado na pulsão latejante e febril.
Embora comovente seja a súplica aflita dirigida aos especialistas para uma razão qualquer que nos fizesse reconciliar com a pureza e a ingenuidade que idealizamos nas crianças e o clamor dos jornalistas por um mundo que lhe dê menos trabalho reflexivo, haveremos de reconhecer que, infelizmente, explicações reconfortantes não existem. Um mundo onde tudo estava no seu lugar (crianças de um lado, armas de outro; bandidos na prisão, heróis nos pedestais) deu lugar a um outro, desarrumado e instável.
Quando o lúdico e o mortal se fundem num gesto impensado, há mesmo que tentar recolocar as coisas no lugar, mas a despeito de todas as tentativas de explicação e controle, sempre haverá o humano. Este lado obscuro também nos pertence.

Os pais não encontram explicação

Muito Embora...

Tinha algo para dizer à mulher. Algo que mudaria toda sua vida, e o peso da verdade mortificava sua língua, todo o seu corpo e sua terçã.
Desde quando acordara naquela manhã que uma estranha sensação invadiu-lhe por dentro, misturando-se à lembrança de um odor indefinível e um gosto amargo que teimava em arder sob sua língua. Sim, tinha algo para dizer à mulher. Agora tinha certeza, embora permanecesse vago e sem sentido. Sentiu que suava frio, e seus lábios grossos pareciam feitos de cortiça. Sim, estava lá, ainda uma vez mais. E quanto mais pensava naquilo sentia que enlouquecia, quieto mudo, acuado em seu próprio enigma.
No primeiro dia, tentou fazer de conta que nada o incomodava. Percorreu todo seu itinerário cotidiano como um gato desconfiado e esquivo. De manhã à noite, perscrutou todos os lugares em busca da sutil revelação. Nenhum sinal luminoso, ninguém sequer lhe notou a carranca obscura ou lhe dirigiu qualquer pergunta banal. Ninguém se interessaria em ouvir?
No segundo dia, despertou ainda mais confuso, numa meia manhã encardida. A mesma sensação a lhe roubar o sono, a tranquilidade e o pensar. Imaginou por uns instantes o rosto da mulher estupefato, entre o cansaço de suas pálpebras semicerradas no final do dia e sua inquieta imaginação a construir lógicas imponderáveis, onde tudo sempre recaía na má influência do olhar cobiçoso de alguém. Mas tão logo e o implacável despertador anunciou a hora do trabalho, ordenara-se na posição dos outros seres que cumpriam a mesma liturgia mundana das manhãs. Porém com algo entredentes que lhe assegurava: nunca mais se calaria no vazio de não saber responder, nunca mais deixaria que lhe completassem as frases, nunca mais...
Enquanto apertava parafusos suas certezas se aprofundavam. Tudo girava em torno do mesmo eixo previsível. Era a ela a quem deveria dizer. Não cabia a mais ninguém. Com certeza ela o compreenderia. Fosse como fosse possuía um jeito meigo de se colocar no mundo e sua cosmogonia simplificadora apaziguava e enchia de esperança seu coração.
Era por saber disto que naquele dia deixou-se levar pelos odiados afazeres, apertando parafusos num balé particular, um após o outro numa sucessão infinita para poder sair do trabalho e dizer a ela tudo o que possuía guardado dentro de si _ de algum modo ela o entenderia. Mas as horas permaneciam impassíveis, e cada minuto remoía interminável, gotejando sangue de suas têmporas, enquanto que sob sua língua crescia cristalizada, sua verdade, como um tumor latejante, boiando num mar de saliva e cárie.
Quando criança, vira um pássaro sendo sufocado, homens armados que marchavam indiferentes nos jardins floridos e sóis que mergulhavam sem aviso no fim do horizonte. Sim, já tivera coisas para dizer antes, mas ninguém quis ouvir, daí então esquecera. Mas desta vez não, ninguém o impediria! Ninguém!
De repente  o tiquetaquear do relógio estancou  no minuto final, abrindo no espaço um mutismo cruel, deixando órfão o tique, abandonado o tac, mutilados por um longo vácuo de onomatopéias mudas.
Sim, mas ainda estava lá, agora tomando quase toda sua boca, algo que julgou perdido para sempre. Ainda estava lá, ainda maior e mais forte, recendendo de um núcleo remoto e essencial de dentro de si, volatizando com a pressa dos gases, cobrindo o ar como uma revoada de aves selvagens.
Ainda estava lá, e talvez viesse dela. É isso! Como não havia compreendido  ainda?  Era ele a presa, esse algo que o sufocava falaria à sua revelia, apesar dele. Bastaria deixa-lo vir... E então, sentindo que  latejava  enquanto tentava  respirar com sofreguidão, parou de lutar por um instante, suspirou com resignação com o fio de ar que lhe restava e esperou, pois tinha algo para dizer à mulher...