segunda-feira, 1 de agosto de 2016

“Pro Dia Nascer Feliz”

No filme de João Jardim, “Pro Dia Nascer Feliz” (Tambellini filmes, 2007), não fica inteiramente clara a intenção da escolha deste sugestivo título. A meu ver, é por esta lacuna que justamente caminha o filme, num cenário corrompido por algo que circula em torno de uma frustração fundamental. Nele vão ser repercutidas as amarguras das promessas não cumpridas de um futuro triunfante para as crianças e os adolescentes . Promessas estas feitas em nome da Educação.
Na fala do diretor em uma entrevista, ele revela:
 A letra de Cazuza, Pro dia nascer feliz, essa é a vida que eu quis, (teve) a intenção de alertar-nos sobre o destino daqueles jovens que não terão a vida que queriam ter. O filme tenta jogar um pouco de luz nessa questão de como o jovem se comporta dentro da escola, não apenas em relação aos professores, mas também em relação aos colegas e a esse momento intenso em que vive, num mundo extremamente violento e com poucas oportunidades , afirma o diretor. (Michel , Delphine em http://www.pstu.org.br/node/12276)
Em contrate com a desilusão de uma escola  ideal, uma escola cheia de furos, tal como a inquietação da juventude.  No meio desse cipoal de problemas, o professor aparece como o arauto de uma notícia ruim que ele tenta de carregar nas costas.  Expresso na palavras da Professora Celsa de uma escola de Itaquaquecetuba, retratada no filme, ao tentar justificar o alto índice de absenteísmo entre os colegas:
Eu falto por cansaço (...) a carga física e moral é maior do que o ser humano pode suportar (...), você se envolve, mas nem sempre tem retorno. O professor perdeu a dignidade (...) e o Estado deixa tudo jogado. Todo mundo está cansado de ouvir os problemas da Educação, mas ninguém faz nada.
Este lugar de portador de uma notícia desalentadora sobre o futuro não é apenas pouco confortável, mas também se torna alvo e símbolo das inúmeros desencantos que fazem da escola um ambiente ainda mais desestimulante, violento e nada educativo. Desilusão é uma armadilha de quem promete mais do que pode dar. Entretanto, fica a pergunta: essa promessa é de quem? Não é a do profissional da educação.  Tampouco dos alunos que compartilham de seu desesperançado futuro. Mesmo quando, de sua perspectiva,  sentem o futuro como uma abstração ancorada num porvir fugidio e  improvável. Daí o que lhes é oferecido como modelo é algo que poderia ser formulado da seguinte maneira: “estudem bastante para ser como nós professores, mal pagos e frustrados”.
Se é assim, vale tudo: Keila, no filme conta que via o suicídio como uma saída possível; outra acredita que esfaquear a colega é uma alternativa de diálogo aceitável porque inimputável. Por aí vai.
Não me parece que a educação que os alunos ali recebiam fosse acrítica ou despolitizada. Tanto na escola do interior de Pernambuco até na mais estruturada escola de São Paulo. Nem creio que fosse por injunção do efeito da câmera de cinema a registrar tudo e a desencadear discursos que se pretendem inteligentes por parte dos professores. Havia em cada ensinamento um ponto a misturar o diagnóstico dos problemas com uma justificativa conformada deles. Não é que não tivessem razão, entretanto, parece haver uma disjunção profunda entre teoria e ação. A crítica social não encontra na práxis educativa uma continuidade verdadeira.
Na escola de Santa Cruz em S. Paulo um depoimento emblemático ilustra bem esta contradição para além das diferenças sociais marcadas quando uma aluna fala de sua preocupação com os pobres, ao mesmo tempo em que justifica sua falta de ação concreta para mudar tal realidade porque não poderia abandonar seus compromissos com as aulas de natação, yoga entre outras atividades. Também os professores poderiam se identificar com esse discurso: não dá pra mudar nada porque tenho contas a pagar e família para cuidar.

Num mundo cercado de objetos para consumo e gozo que o Capitalismo oferece por atacado o discurso social é apenas mais um deles. Afinal, nenhuma das questões retratadas no filme são novidade. A novidade talvez fosse estas questões se descobrirem tão cinematográficas.
Deste modo, se fizermos um levantamento atualizado da situação da educação atual provavelmente constataríamos que após mais de 10 anos e muitos governos depois da filmagens pouca coisa mudou. Ao professor se espera que continue sendo um fiel depositário de um compromisso de quem não tem compromisso. A violência, a precariedade dos recursos, a busca pelo adolescente de um outro sentido para a vida, a sofrimento de existir num mundo tão injusto, a explosão hormonal da adolescência, o encontro com o real do sexo, o medo de se tornar adulto, o descontrole que o talento instaura, tudo isto continua passando ao largo dos planos de educação.
Hoje, talvez outros adolescentes lancem mão de meios mais contemporâneos para expressar as velhas angústias. Na maior parte das vezes o desejo de mudança dá lugar a acordos possíveis, tais como o “Finjo que ensino, você finge que aprende”. Porém ainda não há efetivamente ninguém que ouse sustentar um ponto de ruptura  que promova a transformação de verdade.


quarta-feira, 1 de junho de 2016

DEPOIMENTO DE UM JOVEM ORIENTADOR






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DESCRIÇÃO:

O EMOCIONANTE DEPOIMENTO 
DE UM SENHOR QUE, DEPOIS DE
SEUS 80 ANOS, TORNOU-SE
ORIENTADOR SOCIAL
VOLUNTÁRIO
DE UM PROGRAMA DE
ACOMPANHAMENTO DE JOVENS
EM CONFLITO COM A LEI.
ELE RELATA COM SENSIBILIDADE
SOBRE OS DESAFIOS,
LIMITES E POSSIBILIDADES
DE SUA INCRÍVEL  EXPERIÊNCIA.
DIRIGIDO POR VLADIMIR RIOMAR E
CYNTHIA SILVA MACHADO

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terça-feira, 24 de maio de 2016

ATENDIMENTO COM THOMAZ



ATENDIMENTO COM THOMAZ
No dia marcado para o atendimento, apresentou-se um jovem negro, alto, um tanto gorducho e com traços infantis em sua expressão que parecia ensaiada para ser carrancuda e displicente. O nome com o qual o chamarei é Thomaz. Junto dele, sua mãe.  A mulher trazia o rosto apreensivo, revelando certo cansaço. Demonstrava ainda o que poderia chamar de uma atenção dispersiva marcada por determinados momentos de ausência repentina, como se quisesse fugir dos acontecimentos a sua volta.
Procurei acolhê-los de maneira afetuosa, embora não encontrasse boa receptividade em contrapartida. O jovem contou-me aos trancos a história que o trouxe até o atendimento no Programa Liberdade Assistida, onde trabalhei como psicólogo. Mesmo tendo atendido ao meu pedido deixou claro que só falaria o que quer que fosse a contragosto. Cada trecho solicitado para esclarecimento ou simplesmente para entabular uma conversa descontraída era precedido por um suspiro sofrido da mãe, a quem impedi que interrompesse a narrativa.
Perguntei-lhe sobre seus dados pessoais para preencher o formulário. Quando questionado a respeito de sua vida escolar, surpreendi-me com seu constrangimento em dizer que não sabia ler e escrever muito bem. Aos poucos revelou que nunca tinha frequentado uma escola. Olhei para sua mãe que se calou nos suspiros, tendo fixado o olhar num lugar distante dali. Percebi que ela também se envergonhava de não saber ler e escrever. Supostamente acostumado com o desfile de miserabilidades que se apresentavam no serviço de Assistência Social da Prefeitura, emudeci por uns instantes diante de tão radical condição de exclusão, refletindo como teria sido minha vida se não tivesse a oportunidade de ter acesso a escola.
Minha mãe era servente numa instituição pública e também conheci de perto sua vergonha inconformada por não saber. Ela tinha abandonado os estudos quando se casou, mas não seu sonho persistente de se tornar professora. Separada do marido, adiou a realização de seu desejo por muitos anos, mesmo tendo feito tentativas que se frustraram pelo imperativo do trabalho e da criação dos filhos. Quando me tornei adolescente, manifestei minha intenção de abandonar os estudos para trabalhar. Minha mãe então vislumbrou a repetição de sua vida envergonhada na trajetória de seus filhos, diante disso, tomou a decisão de matricular-se comigo no turno da noite numa turma do ginasial. A inesperada companhia da mãe na mesma sala-de-aula deixou aturdida minha timidez, mas logo se dissipou na percepção do desafio corajoso que a acolhida dos professores e colegas me fizeram ver. Tão logo, não era minha mãe quem me incentivava, mas eu que me sentia desafiado a superar nossas deficiências de aprendizagem e suas limitações próprias da idade já avançada. Formamos juntos no primeiro grau e depois seguimos caminhos diferentes no 2° grau: ela no magistério, eu num curso técnico de engenharia de agrimensura. Minha mãe formou-se professora aos 61 anos de idade.
Daquele primeiro atendimento muito tempo se passou e Thomaz gradativamente já demonstrava alguma permeabilidade, contudo mantinha-se reservado e lacônico. Vez por outra concedia um sorriso maroto que este psicólogo tomava como uma vitória sobre a pesada muralha que ele erguera. Não é para menos: encontrar alguém com quem possa dividir sua liberdade é ao mesmo tempo perdê-la e tomar posse dela, mas significa também poder fazer o melhor uso de suas possibilidades, rompendo-a de seu ideal solitário e errante. No Liberdade Assistida o encontro com o jovem se dá no limite da inexorável contradição do ônus da determinação judicial e da escolha implicada no caminho do conflito com a lei.
Passados 8 meses, avaliei que Thomaz havia experimentado uma mudança significativa em sua relação conflituosa com o mundo, construindo alternativas entre a rebelião e a resignação; dualidade aprisionadora a que se limitara até então. Um fator que me pareceu bastante significativo foi sua entrada no mundo da aprendizagem escolar, para o qual teve decisivo auxílio de um orientador social voluntário, que lhe preparou para uma reconciliação com as primeiras letras.
No final de seu acompanhamento, chamei sua mãe novamente para relatar-lhe os progressos. A mãe então chegou conduzindo seu filho com um leve toque no ombro, e seu rosto franzido sugeria um alento. Enquanto eu falava da importância da continuidade de seu filho na escola percebi que ambos se entreolharam e dois sorrisos simultaneamente se abriram para mim de modo inesperado. A mãe apressou-se em falar que já sabia de tudo isto do que eu lhe dizia, pois ela e o filho eram colegas de escola. Contou-me que resolvera seguir o exemplo de minha mãe e matricular-se também para acompanhar melhor o filho e realizar seu sonho de estudar. Comovido e confuso, senti que havia deixado escapar uma inconfidência da qual sequer me lembrava. Entretanto, tentei prosseguir sem me deixar perturbar quando fui interrompido por agradecimentos efusivos e um abraço duplo que fez cair todas as minhas defesas. A mãe disse que voltar a estudar tinha sido a coisa mais importante que aconteceu em sua vida. O filho disse a seu modo truncado que tinha redescoberto sua mãe em sala-de-aula. Só então me dei conta do que havia transmitido com meu comentário despretensioso: a força de um exemplo capaz de transformar uma vida.