ATENDIMENTO COM THOMAZ
No dia marcado
para o atendimento, apresentou-se um jovem negro, alto, um tanto gorducho e com
traços infantis em sua expressão que parecia ensaiada para ser carrancuda e
displicente. O nome com o qual o chamarei é Thomaz. Junto dele, sua mãe. A mulher trazia o rosto apreensivo, revelando
certo cansaço. Demonstrava ainda o que poderia chamar de uma atenção dispersiva
marcada por determinados momentos de ausência repentina, como se quisesse fugir
dos acontecimentos a sua volta.
Procurei
acolhê-los de maneira afetuosa, embora não encontrasse boa receptividade em
contrapartida. O jovem contou-me aos trancos a história que o trouxe até o
atendimento no Programa Liberdade Assistida, onde trabalhei como psicólogo.
Mesmo tendo atendido ao meu pedido deixou claro que só falaria o que quer que
fosse a contragosto. Cada trecho solicitado para esclarecimento ou simplesmente
para entabular uma conversa descontraída era precedido por um suspiro sofrido
da mãe, a quem impedi que interrompesse a narrativa.
Perguntei-lhe
sobre seus dados pessoais para preencher o formulário. Quando questionado a
respeito de sua vida escolar, surpreendi-me com seu constrangimento em dizer
que não sabia ler e escrever muito bem. Aos poucos revelou que nunca tinha
frequentado uma escola. Olhei para sua mãe que se calou nos suspiros, tendo
fixado o olhar num lugar distante dali. Percebi que ela também se envergonhava
de não saber ler e escrever. Supostamente acostumado com o desfile de
miserabilidades que se apresentavam no serviço de Assistência Social da
Prefeitura, emudeci por uns instantes diante de tão radical condição de
exclusão, refletindo como teria sido minha vida se não tivesse a oportunidade
de ter acesso a escola.
Minha mãe era
servente numa instituição pública e também conheci de perto sua vergonha
inconformada por não saber. Ela tinha abandonado os estudos quando se casou,
mas não seu sonho persistente de se tornar professora. Separada do marido,
adiou a realização de seu desejo por muitos anos, mesmo tendo feito tentativas
que se frustraram pelo imperativo do trabalho e da criação dos filhos. Quando
me tornei adolescente, manifestei minha intenção de abandonar os estudos para
trabalhar. Minha mãe então vislumbrou a repetição de sua vida envergonhada na
trajetória de seus filhos, diante disso, tomou a decisão de matricular-se
comigo no turno da noite numa turma do ginasial. A inesperada companhia da mãe
na mesma sala-de-aula deixou aturdida minha timidez, mas logo se dissipou na
percepção do desafio corajoso que a acolhida dos professores e colegas me
fizeram ver. Tão logo, não era minha mãe quem me incentivava, mas eu que me
sentia desafiado a superar nossas deficiências de aprendizagem e suas
limitações próprias da idade já avançada. Formamos juntos no primeiro grau e
depois seguimos caminhos diferentes no 2° grau: ela no
magistério, eu num curso técnico de engenharia de agrimensura. Minha mãe
formou-se professora aos 61 anos de idade.
Daquele primeiro
atendimento muito tempo se passou e Thomaz gradativamente já demonstrava alguma
permeabilidade, contudo mantinha-se reservado e lacônico. Vez por outra
concedia um sorriso maroto que este psicólogo tomava como uma vitória sobre a
pesada muralha que ele erguera. Não é para menos: encontrar alguém com quem
possa dividir sua liberdade é ao mesmo tempo perdê-la e tomar posse dela, mas
significa também poder fazer o melhor uso de suas possibilidades, rompendo-a de
seu ideal solitário e errante. No Liberdade Assistida o encontro com o jovem se
dá no limite da inexorável contradição do ônus da determinação judicial e da
escolha implicada no caminho do conflito com a lei.
Passados 8 meses,
avaliei que Thomaz havia experimentado uma mudança significativa em sua relação
conflituosa com o mundo, construindo alternativas entre a rebelião e a
resignação; dualidade aprisionadora a que se limitara até então. Um fator que
me pareceu bastante significativo foi sua entrada no mundo da aprendizagem
escolar, para o qual teve decisivo auxílio de um orientador social voluntário,
que lhe preparou para uma reconciliação com as primeiras letras.
No final de seu
acompanhamento, chamei sua mãe novamente para relatar-lhe os progressos. A mãe
então chegou conduzindo seu filho com um leve toque no ombro, e seu rosto
franzido sugeria um alento. Enquanto eu falava da importância da continuidade
de seu filho na escola percebi que ambos se entreolharam e dois sorrisos
simultaneamente se abriram para mim de modo inesperado. A mãe apressou-se em
falar que já sabia de tudo isto do que eu lhe dizia, pois ela e o filho eram
colegas de escola. Contou-me que resolvera seguir o exemplo de minha mãe e
matricular-se também para acompanhar melhor o filho e realizar seu sonho de
estudar. Comovido e confuso, senti que havia deixado escapar uma inconfidência
da qual sequer me lembrava. Entretanto, tentei prosseguir sem me deixar
perturbar quando fui interrompido por agradecimentos efusivos e um abraço duplo
que fez cair todas as minhas defesas. A mãe disse que voltar a estudar tinha
sido a coisa mais importante que aconteceu em sua vida. O filho disse a seu
modo truncado que tinha redescoberto sua mãe em sala-de-aula. Só então me dei
conta do que havia transmitido com meu comentário despretensioso: a força de um
exemplo capaz de transformar uma vida.