quarta-feira, 22 de julho de 2015

Exemplos e modelos



São seis horas da manhã. A professorinha sai religiosamente neste horário para pegar dois ônibus para cruzar a cidade e então chegar pontualmente ao centro industrial vizinho na periferia da Grande BH, onde se encontra sua escola. No caminho de seu prédio, o homem que faz parte de um casal de moradores de rua, ainda deitado, acena alegre num cumprimento que evoca uma intimidade que não existe. A moradora de rua, sua companheira, exibe uma carranca pachorrenta de desaprovação e sono. Um odor fétido se levanta em meio aos escombros humanos, misturando urina, fezes, suor e sobras de comida.

Na convivência involuntária desses personagens urbanos um contraste se acentua quando é contabilizado o pagamento destinado a cada um ao final do dia pelo esforço empregado para a subsistência nesta engrenagem viciosa. Para a professorinha, alguns trocados para que ela continue na ilusão de um sacerdócio sem fim em nome do progresso da nação. Para os mendigos, a reprodução de seu modus vivendi como um modelo escópico para os discursos políticos e o exercício de nossa piedade judaico-cristã.

Acredito que para determinados grupos sociais ou conjunto de indivíduos, constituir-se como um padrão de confirmação de teses politicas e/ou a encarnação de valores/ curiosidades humanos é um fenômeno que se repete de forma incessante ao longo da história. Para meu juízo é o que também justifica a monarquia e todo seu apoio popular nos dias de hoje. A despeito de todos os princípios contemporâneos que enfatizam a igualdade social, como conceber que um grupo de pessoas que ainda são separadas por laços de sangue dos comuns dos mortais e por este mesmo motivo são contemplados com uma vida de ócio, luxo e riqueza à custa dos recursos públicos ?

Outros grupos sociais podem ser enquadrados alegremente nesse modelo, tal como os adolescentes infratores, os indígenas não integrados, os negros cotistas e os psicólogos. Para os adolescentes, o ideal de uma infância perdida na fórmula de uma legislação maternal. Aos indígenas, a mumificação de uma natureza selvagem no seio da civilização avassaladora. Para os negros, a consagração de um modelo baseado num equívoco. Para os psicólogos, a confirmação de nossa insana normalidade.

A pergunta é: como resistir aos ganhos que o saber dominante oferta para tornar-se objeto vivo de uma tese acadêmica em detrimento de nossa liberdade de escolhas ?




quinta-feira, 2 de julho de 2015

“Ninguém pode te fazer infeliz sem o teu consentimento”



Em tempos mais ingênuos de onde eu advenho, frases como  “Ninguém pode te fazer infeliz sem o teu consentimento” eram consideradas um tratado de infinita sabedoria.  Talvez não seja de tempos tão distantes assim. Ainda hoje há quem advogue em causa de que seja possível planar intocável por sobre o sumidouro social de hostilidades as mais diversas, gratuitas ou não, sem ser abatido em pleno voo.
Não é o caso deste cronista, espero. Entretanto fico mesmo intrigado com a  incrível multiplicação do que hoje em dia se considera ofensivo ou mesmo humilhante. Trata-se certamente de uma inversão extremada do que antes se considerava que “nada poderia afetar” desde de que se tivesse convicção de sua razão ou retidão de valores. Vale dizer  que em grande medida tal ideia  de ser invulnerável se apoiava num ideal de superioridade antiquada, expresso em frases como  “ O que vem de baixo não me atinge” .  Esse princípio, digamos, “ético” que considerava que certos segmentos não mereciam a devida atenção em seus baixos instintos e se esforçava em tratar suas maquinações persecutórias ou  arranjos que pudessem ser contabilizados como pura inveja no mais completo desprezo não se mostrava assim tão “nobre” ou generoso quando tinha oportunidade de se conflagrar nas mais banais ou cruéis vinganças.
O fato é que na intenção de disciplinar toda frágil suscetibilidade à normatização de uma justiça que anda de olho nos lucrativos dividendos das indenizações, indignar-se hoje em dia é muito mais que uma mera assertiva moral para ser socialmente admirada, mas uma obrigação inescapável de nossos tempos. Todos podem se considerar com motivos de sobra para se sentirem ofendidos pela simples razão de  um outro existir para desmentir sua ilusão de perfeição e felicidade, tão bem demonstrada no Facebook e outras redes sociais.
Sem querer entrar no mérito de discussões jurídicas como os conceitos de injúria, insulto, agravo etc, ficaria feliz se pudesse ainda viver em um mundo em que compartilhar pensamentos e opiniões não fosse tomado como  um ato de pura insensatez somente por ousar fazê-lo. Prefiro lembrar que humilhação possui um componente subjetivo que demanda uma confirmação social de algo que pode ter origem numa história muito, muito pessoal.  Não significa que toda humilhação deva ser desqualificada, tampouco confirmada, entretanto esse buraco que a lei hoje preenche tem feito calar muito mais do que poderia dizer dessa tendência contemporânea de produzir aos milhares  vítimas de forma automática.
Se todos tivermos que nos submeter  ao imperativo narcisista desse pacto onde todos querem ser reforçados como belos e infalíveis qual a possibilidade de encararmos de verdade nossos defeitos reais ou imaginários?

NARA E CIÇA

Nara e ciça



Nara e Ciça eram duas crianças
que viviam  felizes
em sua bela aventurança.

E como tal, brincavam
com tudo que estivesse a mão.
Eram pequenas pedras, caramujos,
nacos de areia do chão.

Nara e ciça tinham
infindável imaginação.
Seus corpos franzinos
no meio da imensidão.

Por cima o sol poente,
cobrindo a tarde  rubra
da pele macia e negra
nenhuma vergonha que lhes cubra.

A brincadeira também
se estendia a toda parte
e em cada descoberta
uma  nova forma de arte

Meninas sapecas
diante de um lindo mistério
como é possível alguém
com graça ficar sério?

Elas se contorciam
de cócegas e risos
e tiravan  troça
de  qualquer juizo.

Suas mãozinhas
tateavam cegamente
no corpo uma da outra
o que faria rir de repente

Do ponto do riso
para da imaginação
muitas coisas inesperadas
vieram então

O que as mãos
descobriam lentamente
Foi um gosto novo
que do fundo vinha quente

E subia rumo ao ventre
num arrepio
deixando  úmido
e latejante cada fio
que entre as pernas
despontava timidamente


Foi então que do tanque
de roupas interveio
a mãe num átimo
raivoso sem volteio:

“Que é que voces estão fazendo?”
Perguntou ela,
como se não estivesse vendo.

“Estamos brincando,
ora essa!”
Responderam as duas
sem pressa.

“Eu num quero que voces
brinquem desse jeito,
Pois na minha casa
exijo respeito!”

Nara e ciça
que nada entenderam
das maldades que a mãe
via ali no meio

e se assustaram com o arfar
gigante dos grandes
e entumescidos seios
que ainda vertiam
o leite que acabarm
de tomar

Das marcas de seu rosto
carrancudo
parecia evocar
um passado mudo

de quem foi
tão viva e bela
e agora vive
presa numa cela

feita de uma bolha
de material
incerto
que nunca fora
descoberto
alguns dizem que o
amor materno
bate as portas do
inferno
numa vida
cheia  de recatos
e paixões consumidas
como em doze
atos

Nara e Ciça sentiram
então por dentro
uma coisa que
se fazia arrepiar
não era a ação
fria do vento
mas era algo estranho no ar

foi então
que decidiram assim
sem eira nem beira
como as coisas
que se decidem
por menos que se queira
deixar nem um pó
ou vertigem
coisas que sem nome
nos atingem
desse fogo
que ardia inclemente
se apagar docemente
e assim sumir
no mundo
sem dó
como quem cai
num buraco fundo
ou numa fundura
pior

pra voltar  tão somente
quando tudo pudesse
ser diferente...

Nara e Ciça
não se esqueceram
uma  da outra
nas voltas que
o tempo dá
mas deixaram
correr solta
uma vontade de
mudar

Deixar o mundo
sem embaraço
onde somente a
a poesia pura
pudesse ter laço
na ternura
e na verdade do
olhar

Onde duas
crianças pudessem
amar
sem vergonha de
sonhar

E neste
mundo sem fim
nada mudasse o
jeito de ser assim
inocente e livre
das crianças
que vem  nos lembrar
que a esperança
não pode nunca
se acabar