terça-feira, 24 de maio de 2016

ATENDIMENTO COM THOMAZ



ATENDIMENTO COM THOMAZ
No dia marcado para o atendimento, apresentou-se um jovem negro, alto, um tanto gorducho e com traços infantis em sua expressão que parecia ensaiada para ser carrancuda e displicente. O nome com o qual o chamarei é Thomaz. Junto dele, sua mãe.  A mulher trazia o rosto apreensivo, revelando certo cansaço. Demonstrava ainda o que poderia chamar de uma atenção dispersiva marcada por determinados momentos de ausência repentina, como se quisesse fugir dos acontecimentos a sua volta.
Procurei acolhê-los de maneira afetuosa, embora não encontrasse boa receptividade em contrapartida. O jovem contou-me aos trancos a história que o trouxe até o atendimento no Programa Liberdade Assistida, onde trabalhei como psicólogo. Mesmo tendo atendido ao meu pedido deixou claro que só falaria o que quer que fosse a contragosto. Cada trecho solicitado para esclarecimento ou simplesmente para entabular uma conversa descontraída era precedido por um suspiro sofrido da mãe, a quem impedi que interrompesse a narrativa.
Perguntei-lhe sobre seus dados pessoais para preencher o formulário. Quando questionado a respeito de sua vida escolar, surpreendi-me com seu constrangimento em dizer que não sabia ler e escrever muito bem. Aos poucos revelou que nunca tinha frequentado uma escola. Olhei para sua mãe que se calou nos suspiros, tendo fixado o olhar num lugar distante dali. Percebi que ela também se envergonhava de não saber ler e escrever. Supostamente acostumado com o desfile de miserabilidades que se apresentavam no serviço de Assistência Social da Prefeitura, emudeci por uns instantes diante de tão radical condição de exclusão, refletindo como teria sido minha vida se não tivesse a oportunidade de ter acesso a escola.
Minha mãe era servente numa instituição pública e também conheci de perto sua vergonha inconformada por não saber. Ela tinha abandonado os estudos quando se casou, mas não seu sonho persistente de se tornar professora. Separada do marido, adiou a realização de seu desejo por muitos anos, mesmo tendo feito tentativas que se frustraram pelo imperativo do trabalho e da criação dos filhos. Quando me tornei adolescente, manifestei minha intenção de abandonar os estudos para trabalhar. Minha mãe então vislumbrou a repetição de sua vida envergonhada na trajetória de seus filhos, diante disso, tomou a decisão de matricular-se comigo no turno da noite numa turma do ginasial. A inesperada companhia da mãe na mesma sala-de-aula deixou aturdida minha timidez, mas logo se dissipou na percepção do desafio corajoso que a acolhida dos professores e colegas me fizeram ver. Tão logo, não era minha mãe quem me incentivava, mas eu que me sentia desafiado a superar nossas deficiências de aprendizagem e suas limitações próprias da idade já avançada. Formamos juntos no primeiro grau e depois seguimos caminhos diferentes no 2° grau: ela no magistério, eu num curso técnico de engenharia de agrimensura. Minha mãe formou-se professora aos 61 anos de idade.
Daquele primeiro atendimento muito tempo se passou e Thomaz gradativamente já demonstrava alguma permeabilidade, contudo mantinha-se reservado e lacônico. Vez por outra concedia um sorriso maroto que este psicólogo tomava como uma vitória sobre a pesada muralha que ele erguera. Não é para menos: encontrar alguém com quem possa dividir sua liberdade é ao mesmo tempo perdê-la e tomar posse dela, mas significa também poder fazer o melhor uso de suas possibilidades, rompendo-a de seu ideal solitário e errante. No Liberdade Assistida o encontro com o jovem se dá no limite da inexorável contradição do ônus da determinação judicial e da escolha implicada no caminho do conflito com a lei.
Passados 8 meses, avaliei que Thomaz havia experimentado uma mudança significativa em sua relação conflituosa com o mundo, construindo alternativas entre a rebelião e a resignação; dualidade aprisionadora a que se limitara até então. Um fator que me pareceu bastante significativo foi sua entrada no mundo da aprendizagem escolar, para o qual teve decisivo auxílio de um orientador social voluntário, que lhe preparou para uma reconciliação com as primeiras letras.
No final de seu acompanhamento, chamei sua mãe novamente para relatar-lhe os progressos. A mãe então chegou conduzindo seu filho com um leve toque no ombro, e seu rosto franzido sugeria um alento. Enquanto eu falava da importância da continuidade de seu filho na escola percebi que ambos se entreolharam e dois sorrisos simultaneamente se abriram para mim de modo inesperado. A mãe apressou-se em falar que já sabia de tudo isto do que eu lhe dizia, pois ela e o filho eram colegas de escola. Contou-me que resolvera seguir o exemplo de minha mãe e matricular-se também para acompanhar melhor o filho e realizar seu sonho de estudar. Comovido e confuso, senti que havia deixado escapar uma inconfidência da qual sequer me lembrava. Entretanto, tentei prosseguir sem me deixar perturbar quando fui interrompido por agradecimentos efusivos e um abraço duplo que fez cair todas as minhas defesas. A mãe disse que voltar a estudar tinha sido a coisa mais importante que aconteceu em sua vida. O filho disse a seu modo truncado que tinha redescoberto sua mãe em sala-de-aula. Só então me dei conta do que havia transmitido com meu comentário despretensioso: a força de um exemplo capaz de transformar uma vida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário