domingo, 24 de julho de 2011

Vocação


A professora iniciante começou a substituição naquele dia. Aquele maldito dia quente como o diabo. Mais um daqueles dias em que um bando de meninos pobres e barulhentos empesteariam o ar com seus boduns e gritaria.  Um daqueles muitos dias infernais que se sucederiam inacabáveis, pensou ela.
__ Senta menino e tire o dedo do nariz!, gritou num franzir de testa repentino, entre um sorriso angelical e outro.
__ Não, não quero seu lanchinho, já disse! Confirmou entre os dentes cerrados, afastando da boca o pirulito que lhe melou o queixo.
__ Agora ninguém vai poder ir ao banheiro! Grunhiu do meio da algazarra.
Maldita a hora em que teve a ideia de pedir bilhetes de boas vindas. Começou com uma enxurrada de coraçõezinhos pintados de vermelho. Depois formou-se uma fila para beijinhos melequentos. Logo em seguida, uma roda de abraços e pedidos de parabéns por escrito.
Precisava do dinheiro, mas a professorinha odiava o ofício, tal como lhe havia sido apresentado quando era aluna. E ainda mais tal como lhe prometia  aquele começo. Não suportava que lhe chamassem de tia, mas achava que iria se impor aos poucos, na devida oportunidade. Ali pareceu-lhe cruel e despropositado combater tanta afeição gratuita. Foi educada assim, para ceder diante de qualquer um que lhe demonstrasse um naco qualquer de  atenção.
__Não pode puxar o cabelo da coleguinha!, beliscou o gorducho que implicava com a menina chorona de cabelos ruivos. Foi então que plaft! Sua bolsa se estatelou no chão num estrondo de calar meio mundo. Até crianças de pré-escola. Espelhinho para lá, baton pra cá. Carteira magra cheia de moedas para todo lado. Mais festa para os anões-foliões. No meio do mosaico de sua pobreza involuntariamente exposta, um papel amarfanhado e roto chamou sua atenção. Abri-o e leu estupefada: Caraio, vai tomar no cú, fessora!
Engoliu em seco e, de soslaio, observou tentando descobrir como aquilo tinha chegado ali. Se algum aluno teria escrito. Foi quando viu do fundo da sala um negrinho retinto como piche e olhos enormes que a olhavam num tom entre o aflito e o orgulhoso. Como se fosse uma alucinação no caos. Como um amuleto humano esquecido no tempo.
Sem saber o que diria, reparou de novo no bilhete, comparando a escrita e a criatura. Desta vez, notou a letra errática. As palavras escolhidas e uma grafia surpreendentemente adulta. Percebeu que o menino sabia ler e escrever.
Então perguntou, quase sem pensar: o que é caraio?
O menino abriu um sorriso que iluminou seu rosto com fogo. E um vento tépido atravessou os dois e os envolveu.
 Havia começado ali uma inesperada vocação.

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