quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Muito Embora...

Tinha algo para dizer à mulher. Algo que mudaria toda sua vida, e o peso da verdade mortificava sua língua, todo o seu corpo e sua terçã.
Desde quando acordara naquela manhã que uma estranha sensação invadiu-lhe por dentro, misturando-se à lembrança de um odor indefinível e um gosto amargo que teimava em arder sob sua língua. Sim, tinha algo para dizer à mulher. Agora tinha certeza, embora permanecesse vago e sem sentido. Sentiu que suava frio, e seus lábios grossos pareciam feitos de cortiça. Sim, estava lá, ainda uma vez mais. E quanto mais pensava naquilo sentia que enlouquecia, quieto mudo, acuado em seu próprio enigma.
No primeiro dia, tentou fazer de conta que nada o incomodava. Percorreu todo seu itinerário cotidiano como um gato desconfiado e esquivo. De manhã à noite, perscrutou todos os lugares em busca da sutil revelação. Nenhum sinal luminoso, ninguém sequer lhe notou a carranca obscura ou lhe dirigiu qualquer pergunta banal. Ninguém se interessaria em ouvir?
No segundo dia, despertou ainda mais confuso, numa meia manhã encardida. A mesma sensação a lhe roubar o sono, a tranquilidade e o pensar. Imaginou por uns instantes o rosto da mulher estupefato, entre o cansaço de suas pálpebras semicerradas no final do dia e sua inquieta imaginação a construir lógicas imponderáveis, onde tudo sempre recaía na má influência do olhar cobiçoso de alguém. Mas tão logo e o implacável despertador anunciou a hora do trabalho, ordenara-se na posição dos outros seres que cumpriam a mesma liturgia mundana das manhãs. Porém com algo entredentes que lhe assegurava: nunca mais se calaria no vazio de não saber responder, nunca mais deixaria que lhe completassem as frases, nunca mais...
Enquanto apertava parafusos suas certezas se aprofundavam. Tudo girava em torno do mesmo eixo previsível. Era a ela a quem deveria dizer. Não cabia a mais ninguém. Com certeza ela o compreenderia. Fosse como fosse possuía um jeito meigo de se colocar no mundo e sua cosmogonia simplificadora apaziguava e enchia de esperança seu coração.
Era por saber disto que naquele dia deixou-se levar pelos odiados afazeres, apertando parafusos num balé particular, um após o outro numa sucessão infinita para poder sair do trabalho e dizer a ela tudo o que possuía guardado dentro de si _ de algum modo ela o entenderia. Mas as horas permaneciam impassíveis, e cada minuto remoía interminável, gotejando sangue de suas têmporas, enquanto que sob sua língua crescia cristalizada, sua verdade, como um tumor latejante, boiando num mar de saliva e cárie.
Quando criança, vira um pássaro sendo sufocado, homens armados que marchavam indiferentes nos jardins floridos e sóis que mergulhavam sem aviso no fim do horizonte. Sim, já tivera coisas para dizer antes, mas ninguém quis ouvir, daí então esquecera. Mas desta vez não, ninguém o impediria! Ninguém!
De repente  o tiquetaquear do relógio estancou  no minuto final, abrindo no espaço um mutismo cruel, deixando órfão o tique, abandonado o tac, mutilados por um longo vácuo de onomatopéias mudas.
Sim, mas ainda estava lá, agora tomando quase toda sua boca, algo que julgou perdido para sempre. Ainda estava lá, ainda maior e mais forte, recendendo de um núcleo remoto e essencial de dentro de si, volatizando com a pressa dos gases, cobrindo o ar como uma revoada de aves selvagens.
Ainda estava lá, e talvez viesse dela. É isso! Como não havia compreendido  ainda?  Era ele a presa, esse algo que o sufocava falaria à sua revelia, apesar dele. Bastaria deixa-lo vir... E então, sentindo que  latejava  enquanto tentava  respirar com sofreguidão, parou de lutar por um instante, suspirou com resignação com o fio de ar que lhe restava e esperou, pois tinha algo para dizer à mulher...

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