quarta-feira, 5 de outubro de 2011

UM TIRO À ESMO NA ESCURIDÃO DO DESEJO

Davi Mota Nogueira ( Reprodução)

Dentre as relações que um objeto estabelece com a linguagem, dois pólos extremos podem ser divisados: o estigma e o simbólico. Nesse vertiginoso e sutil limite estão muitos deles, entre os quais as armas talvez sejam uma sua versão mais corrente.
O episódio que envolveu uma criança de 10 anos que se serviu de uma arma para atirar na professora e por fim a sua própria vida com um tiro na cabeça, representa, a meu ver, muito bem essa estranha relação. Uma arma nas mãos de uma criança tão pequena dificilmente  traria bons resultados, contudo é num certo elemento de autonomia que lhe transcende a condição de mero objeto que me motiva a pensar que algo parece escapar das posições que a asseguram um lugar prefixado e estático, em cuja moldura se recusa a conformar.
Oportunidade inevitável para as campanhas de desarmamento que insistem em repetir o bordão “arma só serve para matar”. Também é ocasião para liberar os significados que atribuímos às coisas mais banais, e que, provavelmente, gostaríamos que se esgotassem em si mesmos. De minha parte, prefiro o ponto de vista de quem não se esquece de que armas também são instrumentos sedutores que remetem ao poder e à sexualidade. Por isso são  considerados símbolos fálicos.
Se a dimensão do estigma é a redução do objeto a um único e limitado significado (morte-violência), a do símbolo é a ampliação de sua referência concreta (poder /sexualidade). Não é à toa que  meninos de todas as idades aspiram o  porte e a ostentação de um objeto que se situa num além de sua instância material. Mostrar a pistola do pai para amigos e ganhar notoriedade e prestígio no jogo da afirmação social significa uma promoção no âmbito da conquista de um lugar de domínio exclusivo daqueles que não são vistos como tolos e certinhos. Assim, o jovem garoto, “bom filho”, “aluno exemplar” e criado num lar de formação evangélica saltou por uns instantes para a complexidade dos  seres humanos providos de contradições e incertezas. As evidências parecem confirmar que nenhum motivo justificaria o acontecido, a não ser a explosão própria da libido. O gozo que, não por acaso, atingiu o quadril da professora foi um tiro à esmo na escuridão do desejo. Um disparo descontrolado na pulsão latejante e febril.
Embora comovente seja a súplica aflita dirigida aos especialistas para uma razão qualquer que nos fizesse reconciliar com a pureza e a ingenuidade que idealizamos nas crianças e o clamor dos jornalistas por um mundo que lhe dê menos trabalho reflexivo, haveremos de reconhecer que, infelizmente, explicações reconfortantes não existem. Um mundo onde tudo estava no seu lugar (crianças de um lado, armas de outro; bandidos na prisão, heróis nos pedestais) deu lugar a um outro, desarrumado e instável.
Quando o lúdico e o mortal se fundem num gesto impensado, há mesmo que tentar recolocar as coisas no lugar, mas a despeito de todas as tentativas de explicação e controle, sempre haverá o humano. Este lado obscuro também nos pertence.

Os pais não encontram explicação

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