segunda-feira, 18 de abril de 2011

Um corpo não reconhecido



Passado o primeiro assombro dos que foram afetados pela tragédia, entram em cena  aqueles aos quais cabe fazer a higiene técnica do ocorrido: o preciso exame dos fatos por meio da classificação dos corpos, os detalhes eróticos da penetração da bala, o ângulo milimétrico do bem dotado calibre, a  profundidade e espessura do buraco a que todos nos precipitamos. Declarar a causa mortis,  requer precisão. A conclusão aos olhos de um leigo pode parecer que está esfregada na cara. Mas não, há uma vertente voraz da burocracia que clama por relatórios e pareceres embasados e só se justifica e se acalma diante das mais ínfimas descrições. Sórdidas? Talvez!
A perícia técnica ocupa o lugar da indignação e a minúcia obsessiva reconstitui o que restou do gozo mortífero que arrastou 12 crianças e deixou um rastro de perguntas a serem respondidas.
Ou não.
Batalhões de especialistas completam a exumação do fantasma redivivo. Seria o assassino um psicopata?  Psicótico, sociopata ou multinada? A disputa pelo diagnóstico apaziguador tira noites de sono de psicólogos, psiquiatras, criminologistas, e “achistas” convocados a nobre missão de aliviar a angústia coletiva. Entregam-se ao afã de colecionar passagens da biografia do assassino que comprovem a teoria já pronta e acabada. E talvez ponderem pela conveniência de  omitir certos detalhes para confirmar o que reza nos livros científicos.
A mensagem subliminar é que nada do que se passou nos  diz respeito. Estamos além da miséria humana ali representada, uma vez que  fomos todos nivelados a condição de víimas. E nossa técnica existe para nos redimir da monstruosidade que nos habita.
Entretanto, lá num lugar qualquer do IML do Rio de Janeiro. E futuramente numa vala comum já reservada, um corpo que pedia para ser lembrado num ritual sacro-profano de uma religião delirante. Dali talvez assistisse pasmo a toda estranha notoriedade em morte
que nunca obteve em vida.
Ninguém, entretanto, ousou reconhecê-lo de fato.  Nenhuma religião o salvou da crucificação coletiva. Ninguém ousou descerrar o véu diáfano da censura pública que lhe pesa, recobrindo a verdadeira face de sua identidade errante.  Ele que manifestou como último desejo  a honraria de ter seu corpo consagrado por um homem de Deus, sequer logrou o reconhecimento de  qualquer parente próximo.  Restou-lhe a maldição de ter de se   conformar ao julgamento de homens  impuros, como eu, que lhe frustraram o sonho de uma  epopéia heróica.

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